03 - Between heaven and earth, Inhumas
Os produtos expostos na feira de Inhumas variam conforme o grau de proximidade com a terra. Aqui vêem-se ingás, diretamente da árvore para o paladar do cliente, sem outro atravessador que não seja a carroceria do veículo de quem as colheu.
The goods in Inhumas’s market vary according to the degree of closeness to the earth. Here one sees “ingas” directly from the tree to the client’s palate, with no middleman but the body of the vehicle belonging to those who gathered them.
Mais adiante, alguém prepara as folhas de couve devidamente cultivadas, colhidas, amarradas, arrumadas, expostas e retocadas com límpidas gotas de água.
A little further, someone prepares cabbage leaves that were fully grown, harvested, tied, arranged, cleaned, exposed and touched up with water droplets.
Embora exijam mais cuidado e dedicação, as galinhas são expostas com menor sofisticação.
Although requiring more care and dedication, chickens are exposed with less sophistication.
Aqui jaz pendurada uma natureza-morta – ainda que com metafísica mais brutal do que a de Juan Sánchez Cotán.
Here lies a hanging still life – even though it conveys more brutal metaphysics than represented by a painter like Juan Sánchez Cotán.
O primeiro produto manufaturado aparece aqui em estágio bem próximo das mãos. Panelas esculturais remetem ainda ao gesto que as fez e seu arredondado pede para ser acariciado.
The first manufactured product appears here in a stage very close to the hands. Sculptural pans still refer to the gesture that made them and their rounded shape demand to be caressed.
As mãos estão explícitas, mas o processo que transformou a cana-de-açúcar em aguardente é realidade distante para quem busca uma maneira de apenas pairar no domingo.
The hands are explicit, but the process that transformed sugar cane into aqua vitae is distant reality for those just seeking a way to hover in a Sunday morning.
Nessa alegoria barroca, roupas e adornos foram colocados nos troncos de manequins, e os manequins, sobre uma mesa bem próxima ao chão, e sobre a mesa, uma toalha com estampa de mesa posta, e sob a mesa, um pano retorcido. Apesar do vento e do olhar vago da moça, aqui não há lugar para as nuvens.
In this baroque allegory, clothes and ornaments were placed on the trunks of mannequins and the mannequins, on a table right next to the ground, and on the table, a towel printed with a table set and under the table, a twisted cloth. Despite the wind and the girl’s vague stare, there is no place here for the clouds.
À margem e ao centro, pelas bordas da indústria cultural e ao mesmo tempo fincada nela sob a forma de pirataria, outros produtos da feira promovem uma confraternização em volta de uma mesa.
Em curiosa inversão, um comércio marginal lida não com a cultura da margem, mas com enlatados culturais. Mesmo não sendo uma missa, a feira não deixa de ser uma comunhão dominical. Os deuses, porém, vêm da mídia.
At the margins and in center, at the edge of cultural industry while also immersed in it in the form of piracy, other products at the market promote socializing around a table.
In a curious inversion, a marginal trade deals not with underground culture but with mainstream films. While not a Mass, the fair is still a kind of Sunday communion. The gods, however, come from the media.
Continuo encontrando ressonâncias deleuzo-guattarianas no teu trabalho, e dobalianas no livro que continuo a ler, O que é a filosofia. Estou no último capítulo, que é sobre a arte. Os autores falam sobre a carne, por exemplo, para descartar a possibilidade dela sustentar o bloco de sensações em que a arte está empenhada. Ela é "apenas o termômetro de um devir", ela "não é sensação, mesmo se ela participa de sua revelação". Para sustentar o percepto e o afecto, é necessária a casa, com as suas janelas a deixar que o fundo, o universal, o cosmos, componha com ela um jogo de forças; e eis o que talvez pretenda essa moça, com seu olhar lânguido, que instalou essa geometria em plena curva. "A arte começa talvez com o animal" dizem esses dois filósofos à p. 217, e o que se segue é digno de ser lido.
ResponderExcluirE transcrito: "Mas não são somente estes compostos melódicos determinados que constituem a natureza, mesmo generalizados: é preciso também, sob um outro aspecto, um plano de composição sinfônica infinito, da Casa ao universo. Da endosensação à exosensação. É que o território não se limita a isolar e juntar, ele abre para forças cósmicas que sobem de dentro ou que vêm de fora, e torna sensíveis seu efeito sobre o habitante. É um plano de composição do carvalho que porta ou comporta a força de desenvolvimento da bolota e a força de formação das gotas, ou o do carrapato, que tem a força da luz capaz de atrair o animal até a ponta de um galho, numa altura suficiente, e a forma de peso com a qual se deixa cair sobre o mamífero que passa - e entre os dois, nada, um vazio assustador que pode durar anos, se o mamífero não passa."
ResponderExcluirAndrés, não tinha visto sua msg. Vou considerar como uma meta conseguir tudo isso, fazer convergir endossensação e exossensação, ou ainda, quem sabe, fotografar o vazio entre o carrapato e o mamífero que passa - o que pareceria um poema do Manoel de Barros. Ele não disse que fotografou o silêncio ? Um silêncio gritante, talvez seja esse o critério para uma boa foto, toda a imobilidade da fotografia deve convergir para um silêncio gritante. Fico sempre feliz que você associe esse trabalho no blog a autores que me são caros. Acho que é uma conquista deixar transparecer quem carregamos - dá a impressão de se estar mesmo em rede.
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