sábado, 30 de julho de 2011

4 - A Cidade de Goiás percorrida em cinco capítulos

4 – Mais gente (e algumas criaturas) 


     Por criaturas entendo algo de outra natureza, algo criado ou de uma existência mais imaterial, e que ainda assim fica ali afetando a gente. Podem ser eventuais criaturas: as palavras, os sons, a música, os odores, os objetos, as imagens, os santos, os filmes, os personagens reais e fictícios, as lembranças, os diálogos que continuam ecoando. Enfim, tudo o que vai e vem em involuntárias ruminações.

   Motorista aparentemente dorme na Central de Moto-Taxi, no mercado, com música altíssima tocando no mesmo recinto: “Essa noite passada sonhei com você.”  


   Altar construído para Nossa Senhora do Rosário, antecedido por uma comprida pérgula no jardim do monastério dos freis dominicanos. 


   Audiência no bar do mercado ouve o show de violeiros logo ao lado deles cantando: “Linda morena, para matar minha saudade, ao Paraguai eu voltarei.” Mas poderia também ser o Cartola, de peito vazio, cantando:  

               Vou seguir os conselhos
               De amigos
               E garanto que não beberei
               Nunca mais
               E com o tempo
               Essa imensa saudade que sinto
               Se esvai
 


     A guia do Palácio dos Arcos explica que o equilíbio daquela pedra de trinta toneladas sustentada por pedras bem menores era um desafio para a física até o dia em que jovens resolveram dinamitar o monumento natural.
    Sobrou a imagem do que existiu para testemunhar o gesto de vandalismo. Entre tantos objetos referentes aos políticos que passaram por aquele palácio-museu, esse foi o mais marcante. O vandalismo é também um gesto político, nem que seja pela total ausência de ética – uma ausência tantas vezes tão surpreendentemente próxima da política. Teria sido por isso que deixaram permanecer naquele templo da história oficial uma imagem apontando para o avesso da definição de política ? 


    Durante décadas Seu Jair acumulou na sua venda diversas máquinas de costura, armas usadas na II Guerra Mundial, correntes usadas por escravos e também todo tipo de vestígio histórico não necessariamente relevante, porém à venda – cestas, canetas, tigelas, panelas, bonecas, lamparinas, pinturas, gravuras, cinzeiros, souvenirs, vasos de flores, máscaras, sinos, santos, esporões. A entrada do seu museu particular, uma venda no mercado da cidade, custa R$ 2,00.  Ele aparece aqui na porta que leva ao seu tesouro de criaturas amortecidas.


   Cora Coralina à janela e por ela mesma:
   “Recria tua vida, sempre, sempre.
    Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
   Faz de tua vida mesquinha
   um poema.”


Nenhum comentário:

Postar um comentário